Istambul (V): o Hüzün
"Agora, no entanto, esforço-me por falar não da melancolia de Istambul, mas do hüzün
(muito próximo da melancolia), um sentimento interiorizado com orgulho e ao mesmo tempo partilhado por toda uma comunidade.
Falo dos fins de tarde que chegam cedo, dos pais que voltam para casa de saco de plástico na mão, sob os candeeiros de rua dos bairros afastados. Falo também dos alfarrabistas idosos que, depois de mais uma crise económica, esperam o cliente todo o dia, arrepiados de frio na sua loja, falo dos barbeiros que se queixam de que, depois das crises, as pessoas se barbeiam menos vezes; falo dos marinheiros que, de balde na mão, limpam os velhos vapur do Bósforo amarrados aos embarcadouros desertos, com um olho virado para a pequena televisão a preto e branco colocada um pouco mais longe, antes de mergulharem no sono dentro do barco; falo das crianças que jogam à bola nas ruas estreitas e empedradas por entre os carros; falo das mulheres de lenço islâmico que, de saco plástico na mão, esperam em silêncio, numa paragem perdida, um autocarro que decididamente não chega; falo dos estaleiros de caíques vazios dos antigos yali, dos cafés a abarrotar de desempregados, dos proxenetas pacientes que, nas noites de Verão, deambulam pelos passeios com a esperança de encontrarem um turista bêbado na maior praça da cidade.
Falo das multidões que nas noites de Inverno, se apressam para não perderem o vapur, das mulheres que, esperando o marido que nunca mais chega, entreabrem as cortinas para espreitarem para a rua;
das criancinhas pequenas que tentam vender lenços de papel a todos os transeuntes, das torres com os seus relógios para onde ninguém olha, da pancada que as crianças levam em casa à noite, assim como das vitórias otomanas que elas lêem nos seus livros de história, "
Orham Pamuk, Istambul, memórias de uma cidade
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