12.3.08

Portugal um retrato social, ou de como isto não muda do dia para a noite

Quando eu comecei a dar aulas, em 1987, apesar de não ser licenciada, consegui um bom horário numa escola perto de Coimbra. Nessa altura tinha-se habilitação suficiente para ensinar desde que se tivesse feito 12 cadeiras (ou ainda menos, dependendo das áreas) de um curso superior. O ensino estava cheio de engenheiros, economistas, farmacêuticos e arquitectos, licenciados ou não, que não conseguiam emprego nas suas áreas e viam no ensino um meio de ganharem a vida (mesmo ganhando pouco) com pouco esforço. Ninguém se chateava muito com os inúmeros atestados médicos apresentados e o artigo 4º (desconto de dias ou horas por conta das férias) e o "dia livre" eram instituições. Eram assim muitos, mas mesmo muitos, professores.

Os alunos: não podemos esquecer que Portugal, ao tempo do 25 de Abril, tinha uma imensa percentagem de analfabetismo, enquanto que, nos países escandinavos, a obrigatoriedade do ensino até ao 9º ano vem do sec XIX. E que são necessárias várias gerações para que os resultados das políticas educativas se façam sentir e ainda que a massificação tem custos. Miúdos e miúdas como a J. e os colegas da J. encontrei eu muitos durante a meia dúzia de anos em que fui professora do liceu:




“J. , uma graça de uma rapariga. Vinha de uma família complicadíssima, com mães, pais, companheiros de mães e companheiros de pais a formarem uma teia difícil de compreender. A mãe tinha tido o primeiro filho aos dezasseis anos e a irmã de J. aos dezasseis anos estava grávida, o que fazia da mãe de J. a avó mais jovem que eu alguma vez conhecera. J. estava integrada na pior turma de míudos a quem eu alguma vez dei aulas. Como é possível ensinar física a adolescentes que não têm o mínimo dos mínimos dos conhecimentos, nem de português nem de nada, criados a porrada e a vinho? A minha luta durante todo o ano que passei com eles foi para os conseguir por a ler qualquer coisa, um livro ou o Record.
No meio da turma J. era um oásis, escolheu um livro para ler - não recomendaria o livro por ela escolhido, mas menos mal - e ia-me dando conta do ritmo de leitura. Mas J. não conseguia alcançar os objectivos mínimos (acho que era assim que se dizia), o que não era admiração nenhuma. A mãe de J. vendia no mercado municipal e J. levantava-se todos os dias às 4 h da manhã para carregar a camioneta com a fruta e os legumes. No fim do ano J. andava aflitíssima porque a mãe tinha-a ameaçado de que se chumbasse não voltava para a escola. E ambas as coisas eram mais que certas, chumbar e abandonar a escola. O conselho de turma confirmou-o, J. tinha mais negativas do que o que era permitido para passar de ano. Na minha disciplina, muito honestamente, e por mais que eu gostasse da rapariga, também deveria ter negativa. Hesitei até ao último momento, mas quando descobri que se a J. tivesse positiva a física passava de ano, mudei a nota, perante a indignação de alguns dos meus colegas. E poucas vezes me senti tão bem com a minha consciência.”

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