24.2.14

Tempos sem livro das caras (III): O telefone


O telefone era uma coisa preta na mesinha do corredor da casa da minha avó.  Ao lado da mesinha havia uma cadeira de pau, elegante e desconfortável, lá se sentavam as pessoas que queriam telefonar.

O telefone era também uma coisa preta numa mesinha ao lado do sofá da sala de visitas da casa da minha bisavó e estou em crer que em casa da minha bisavó as chamadas eram mais confortáveis. Na sala das visitas da casa da minha bisavó havia uma arca de cânfora e as chamadas cheiravam a cânfora, e telefone e cânfora eram dois conceitos estritamente ligados na minha cabeça.
Na sala de visitas da casa da minha bisavó cheirava a cera-de-brilhar-o-chão e havia naperons de crochet nos braços dos sofás onde, e só de longe a longe, se sentavam as visitas, muito direitas e desconfortáveis e, se era inverno, com frio nos pés.

A minha avó sentava-se na cadeira de pau elegante e desconfortável colocada ao lado da mesinha do telefone e ditava os telegramas de parabéns-e-felicidades-ou-de-condolências- conforme-as-ocasiões. Tudo muito bem pensado e reduzido ao mínimo, que os telegramas eram pagos à palavra além de que, invariavelmente, a menina dos telegramas não percebia o ditado da minha avó e podia dar grossa asneira. Muitas felicidade–esse-de sapo não, não é fato, é sapo, esse-de-sino, e por aí fora. Um fartote de rir para quem estava por perto.
Um fartote de rir quando o Senhor Manuel da Lenha, lá ia atender as chamadas dos clientes. O Senhor Manuel da Lenha ou das Casas Novas deixava os socos à porta e gritava, MINHA SENHORA, entre, entre Senhor Manuel, e ele vinha descalço corredor fora e não se sentava na cadeira para não a sujar e dizia muitos palavrões enquanto o apressavam com as entregas da lenha. E o meu avô, à mesa do jantar, sobrolho escandalizado, e nós, crianças, a rir à socapa por debaixo da toalha branca da mesa.

Quando eu era muito pequena o telefone ainda não era em minha casa, os meus pais não tinham necessidade, ou não tinham dinheiro, ou as duas coisas ou ainda outras. O telefone só veio a ser mais tarde e, como vivíamos numa cidade muito do interior, o nosso telefone não tinha uma roda que rodava e, ao invés, levantávamos o auscultador e dizíamos, telefonista ligue-me para o 35, os números eram incrivelmente pequenos porque não havia muitos telefones.



E era assim há 40 anos. Agora temos o facebook e as mensagens-enviado –do-meu-iphone

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