21.3.14

Quando Vier a Primavera

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.


Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" 

7.3.14


4.3.14

Do peso das palavras e isto-está-tudo-ligado


E isto está-tudo-ligado e do que não se pode dizer que já não é o mesmo daquilo que não se podia dizer há uns tempos atrás e estou mesmo farta do politicamente correcto que de correcção não tem nada, porque antes temos que saber em que caixa se encaixa o meu amigo e nessa caixa não tocar. Nas outras serei tanto mais correcto quanto mais enlamear e quanto mais verve der ao insulto. 

Que isto-está-tudo-ligado e tenho uma imagem a manter e está a ver se os meus alunos lêem isto e eu tenho uma imagem a manter.


Que as palavras têm peso, isto-está-tudo-ligado,  e o que é pesado para ti não é pesado para mim e tenho que saber ou adivinhar o que te pesa e esse peso terá que ser universal enquanto eu me mover na tua caixa. Com risco da própria vida e isto-está-tudo-ligado.

Em pequenos  dizíamos deixa de ser mariquinhas, quando de facto estávamos a ser mariquinhas, e um homem não chora porque arranhou o joelho e uma mulher também não chora quando arranha o joelho e o insulto não passava daí, mas agora está-tudo-ligado e uma criança que chama mariquinhas a uma outra que tem medo do escuro, é homofóbica. Que sorte a de não saber o que é homofóbico, o pior insulto que há-de haver porque isto-está-tudo-ligado.


E pode até  ser um filho da puta ou a melhor pessoa do mundo que pouco importa, desde que não   diga palavras homofóbicas o meu amigo pode até ser homofóbico-no-mais-fundo-de-si.

26.2.14

Paco de Lucia




Acompanhou-me o fim da adolescência e a entrada na idade adulta. Acompanhou-me os The Doors e os Joy Division. Depois, estupidamente, quase deixei de o ouvir. Até hoje.





Nos anos 80 ouvi-o ao vivo no Pavilhão dos Olivais em Coimbra. E tudo foi espanto e fascínio, no palco e fora dele, com as famílias ciganas, as belíssimas mulheres ciganas, os homens poderosos, os ritmos das palmas.

24.2.14

Tempos sem livro das caras (III): O telefone


O telefone era uma coisa preta na mesinha do corredor da casa da minha avó.  Ao lado da mesinha havia uma cadeira de pau, elegante e desconfortável, lá se sentavam as pessoas que queriam telefonar.

O telefone era também uma coisa preta numa mesinha ao lado do sofá da sala de visitas da casa da minha bisavó e estou em crer que em casa da minha bisavó as chamadas eram mais confortáveis. Na sala das visitas da casa da minha bisavó havia uma arca de cânfora e as chamadas cheiravam a cânfora, e telefone e cânfora eram dois conceitos estritamente ligados na minha cabeça.
Na sala de visitas da casa da minha bisavó cheirava a cera-de-brilhar-o-chão e havia naperons de crochet nos braços dos sofás onde, e só de longe a longe, se sentavam as visitas, muito direitas e desconfortáveis e, se era inverno, com frio nos pés.

A minha avó sentava-se na cadeira de pau elegante e desconfortável colocada ao lado da mesinha do telefone e ditava os telegramas de parabéns-e-felicidades-ou-de-condolências- conforme-as-ocasiões. Tudo muito bem pensado e reduzido ao mínimo, que os telegramas eram pagos à palavra além de que, invariavelmente, a menina dos telegramas não percebia o ditado da minha avó e podia dar grossa asneira. Muitas felicidade–esse-de sapo não, não é fato, é sapo, esse-de-sino, e por aí fora. Um fartote de rir para quem estava por perto.
Um fartote de rir quando o Senhor Manuel da Lenha, lá ia atender as chamadas dos clientes. O Senhor Manuel da Lenha ou das Casas Novas deixava os socos à porta e gritava, MINHA SENHORA, entre, entre Senhor Manuel, e ele vinha descalço corredor fora e não se sentava na cadeira para não a sujar e dizia muitos palavrões enquanto o apressavam com as entregas da lenha. E o meu avô, à mesa do jantar, sobrolho escandalizado, e nós, crianças, a rir à socapa por debaixo da toalha branca da mesa.

Quando eu era muito pequena o telefone ainda não era em minha casa, os meus pais não tinham necessidade, ou não tinham dinheiro, ou as duas coisas ou ainda outras. O telefone só veio a ser mais tarde e, como vivíamos numa cidade muito do interior, o nosso telefone não tinha uma roda que rodava e, ao invés, levantávamos o auscultador e dizíamos, telefonista ligue-me para o 35, os números eram incrivelmente pequenos porque não havia muitos telefones.



E era assim há 40 anos. Agora temos o facebook e as mensagens-enviado –do-meu-iphone

Tempos sem livro das caras (II)

Hoje acordei a pensar que o facebook não é coisa de gente sã e que, infelizmente, não nos damos conta disso. Mas lá iremos e já faltou mais do que falta, dizem.
Ainda na cama, enquanto lia o email no meu samsungphone, e ouvia os meus filhos a prepararem-se para ir para as aulas, tomei re-consciência de  que da idade deles, universitária como eles, eu NÃO TINHA EMAIL, NÃO COMUNICAVA POR EMAIL, nem sequer TINHA TELEFONE na casa onde vivia. Chamavam-me da casa em frente, Isabel, tens aqui uma chamada, e descia três andares e subia outro e lá estava o auscultador preto do telefone preto, poisado à minha espera.




Então, como cheguei aqui?

A lontra

No sábado fui ver a lontra, a lontra Mikas, a lontra Mikas pareceu-me uma pessoa muito saudável enquanto esfregava a cara com as suas duas mãozinhas, parece que às vezes também é vista de mão dada com a outra lontra com quem partilha casa e mesa. A lontra Mikas não deve ter facebook.

O que eu quero para Coimbra

Não 'sou' de Coimbra porque sempre fui apressada. Estando tudo programado para aqui nascer, resolvi que tinha que vir ao mundo umas semanas antes e troquei as voltas ao destino e à minha mãe. 

Depois acompanhei os meus pais na sua diáspora por terras de Portugal, ora aqui, ora ali. Mas sempre regressando a Coimbra, a casa da bisavó Maria do Carmo, de onde se viam os néons da Portagem, oh fascínio, e onde adormecia a ouvir os 'pantufas' e os 'tlim tlins' dos eléctricos que passavam na Ferreira Borges e na Visconde da Luz.
Como já cá ando há algum tempo, não posso dizer que Coimbra não mudou desde esses remotos anos, os néons foram substituídos, já nem sequer há eléctricos, as casas da rua da bisavó Maria do Carmo ficaram muito mais velhas, de fachadas esfareladas, nalgumas delas mora gente sem luz por não terem como pagar a factura, noutras, em muitas outras, não mora ninguém, os prédios cresceram como cogumelos, mesmo quando não têm quem os habite. Evidentemente, muitas coisas mudaram para melhor, os HUC têm agora umas instalações muito modernas e higiénicas, a cidade reconciliou-se com o rio depois das lavadeiras o terem abandonado (e ainda bem que o abandonaram por muito típico que fosse o postal), a Universidade cresceu em tamanho e importância, internacionalizou-se.

Quando morava em Santa Clara, há poucos anos atrás, ao passar a ponte havia um momento em que a colina da Universidade se reflectia em todo o seu esplendor no espelho do carro – Coimbra é uma cidade tão bonita... por mais vezes que eu passe a ponte e veja a colina no retrovisor...

Mas que pena que os prédios tenham crescido como cogumelos, mesmo quando não têm quem os habite, que as lojas da Baixa estejam fechadas, mesmo se cobertas de desenhos de crianças, que a Universidade se tenha também transformado num grande e selvagem parque de estacionamento com uma torre a espreitar, que a zona do vasto e moderno hospital seja outro imenso parque de estacionamento que põe em causa a segurança de quem tem que lá ir, e que não haja soluções à vista. Que pena que eu tenha que ouvir, uma e outra vez, o desdém dos que agora estão fora, Coimbra? em Coimbra 'no pasa nada'.
Se tinha que ser assim? Claro que não tinha que ser assim. Coimbra tem todas as condições para ser uma cidade aprazível, culta, democrática e justa. Haja quem a queira e saiba assim fazer e governar. E é isso que eu quero para Coimbra.






publicado originalmente em Maio de 2013 na página dos Cidadãos por Coimbra

26.11.13

Fim de tarde em Coimbra: o Sermão de Santa Catarina de Padre António Vieira na Capela de S. Miguel


(dito pelo enorme actor Lima Duarte)

Padre António Vieira e as mulheres ou Santa Catarina e a vitória do sexo


“341. Se na consideração do número venceu Santa Catarina as Virgens sábias do Evangelho, reduzindo ela só a cinqüenta, quando elas, sendo cinco, não puderam nem souberam reduzir a uma, não foi menos ilustre a sua vitória na consideração do sexo. As virgens, sendo mulheres, não ensinaram a uma mulher; Catarina, sendo mulher, ensinou a cinqüenta homens. O apóstolo São Paulo fiou tão pouco do gênero feminino, que a todas as mulheres proibiu o ensinar: Docere autem mulieri non permitto. E que razão teve São Paulo para um preceito tão universal e tão odioso a metade do gênero humano, e na parte mais sensitiva dele? A razão que teve foi a maior de todas as razões, que é a experiência: Adam non est seductus, mulier autem seducta in praevaricatione fuit (1 Tim. 2,14): Em Adão e Eva — diz o Apóstolo — se viu a diferença que há entre o entendimento do homem e o da mulher — porque Eva foi enganada, Adão não. — Ensine logo Adão, ensine o homem; Eva e a mulher, não ensine. O que só lhe convém, e o que lhe mando, é que aprenda e cale: Mulier in silentio discatt. Segundo este preceito, que mais parece natural que positivo, pois o Apóstolo o deduz desde Adão e Eva, Catarina havia de aprender e calar, como mulher, e os filósofos ensinar, como homens, como filósofos, como graduados nas suas ciências, e como os primeiros e mais insignes mestres delas. Mas que Catarina fale e os filósofos ouçam, que Catarina ensine e os filósofos aprendam, que Catarina não só dispute, mas defina, não só argumente, mas conclua, não só impugne, mas vença, e tantos homens, e tais se reconheçam e confessem vencidos, foi vitória que de sexo a sexo só teve um exemplo, e de entendimento a entendimento nenhum.”

19.11.13

Tempos sem livro das caras (I)




Num destes dias ouvia o Mega Ferreira contar como após leituras avulsas do “ À la recherche du temps perdu" decidiu que havia de ler a obra por inteiro, de um fôlego, tal como recomendado por Proust. E que o fez.
Também eu, em tempos, tirei uns dias de férias para ler o “Guerra e Paz”. Eram tempos sem livro das caras