Tempos sem livro das caras (III): O telefone
O telefone era uma coisa preta na
mesinha do corredor da casa da minha avó. Ao lado da mesinha havia uma
cadeira de pau, elegante e desconfortável, lá se sentavam as pessoas que
queriam telefonar.
O telefone era também uma coisa preta
numa mesinha ao lado do sofá da sala de visitas da casa da minha bisavó e estou
em crer que em casa da minha bisavó as chamadas eram mais confortáveis. Na sala
das visitas da casa da minha bisavó havia uma arca de cânfora e as chamadas
cheiravam a cânfora, e telefone e cânfora eram dois conceitos estritamente
ligados na minha cabeça.
Na sala de visitas da casa da minha
bisavó cheirava a cera-de-brilhar-o-chão e havia naperons de crochet nos braços dos sofás onde, e só de
longe a longe, se sentavam as visitas, muito direitas e desconfortáveis e, se
era inverno, com frio nos pés.
A minha avó sentava-se na cadeira de
pau elegante e desconfortável colocada ao lado da mesinha do telefone e ditava
os telegramas de parabéns-e-felicidades-ou-de-condolências-
conforme-as-ocasiões. Tudo muito bem pensado e reduzido ao mínimo, que os
telegramas eram pagos à palavra além de que, invariavelmente, a menina dos
telegramas não percebia o ditado da minha avó e podia dar grossa asneira.
Muitas felicidade–esse-de sapo não, não é fato, é sapo, esse-de-sino, e por aí fora. Um
fartote de rir para quem estava por perto.
Um fartote de rir quando o Senhor
Manuel da Lenha, lá ia atender as chamadas dos clientes. O Senhor Manuel da
Lenha ou das Casas Novas deixava os socos à porta e gritava, MINHA SENHORA,
entre, entre Senhor Manuel, e ele vinha descalço corredor fora e não se sentava
na cadeira para não a sujar e dizia muitos palavrões enquanto o apressavam com
as entregas da lenha. E o meu avô, à mesa do jantar, sobrolho escandalizado, e
nós, crianças, a rir à socapa por debaixo da toalha branca da mesa.
Quando eu era muito pequena o telefone
ainda não era em minha casa, os meus pais não tinham necessidade, ou não tinham
dinheiro, ou as duas coisas ou ainda outras. O telefone só veio a ser mais
tarde e, como vivíamos numa cidade muito do interior, o nosso telefone não
tinha uma roda que rodava e, ao invés, levantávamos o auscultador e dizíamos,
telefonista ligue-me para o 35, os números eram incrivelmente pequenos porque
não havia muitos telefones.
E era assim há 40 anos. Agora temos o facebook e as mensagens-enviado
–do-meu-iphone.
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