29.9.09

In(tolerância)


No voo AirFrance Paris-Montreal segue um enorme grupo de judeus ortodoxos, homens na casa dos vinte, trinta anos. Antes de entrarem para o avião chamam-se uns aos outros e de frente para os vidros da gare rezam longamente, livro na mão, abanando o corpo. Estranha-se mas respeita-se. Já dentro do avião, na demora de sentar 450 passageiros naquela máquina voadora, reparo num casal que se senta do outro lado do corredor. São portugueses, emigrantes no Canadá, daqueles beirões que nunca deixarão de o ser por muitos anos que vivam fora, andarão nuns cinquenta anos bem alimentados: senta-se o homem, depois a mulher, o lugar junto à janela continua vago. Um hospedeiro (?) aborda-os com o seguinte discurso, que eles farão o que entenderem, que ninguém os pode obrigar, mas, caso não se importassem de trocarem de lugar um com o outro (a mulher do lado de fora, o homem para o lado de dentro), porque o passageiro que havia de ocupar o lugar da janela diz que a religião dele não lhe permite sentar-se ao pé de uma mulher. E aparece um dos tais judeus ortodoxos. Pena que a religião dele lhe permita andar de avião. O casal, estupefacto com o pedido, troca os lugares, diz a mulher na sua simplicidade “se o avião caísse eu queria ver quem ia para o céu”. Longe vá o agoiro.
Como se não bastasse, oiço uma discussão atrás de mim, outro casal, a mulher muito doente tinha pedido que lhe dessem um lugar com mais espaço, o que lhe foi concedido. Esqueceram-se foi de que ela, muito doente, havia de querer o marido ao pé e o marido tinha sido enviado para umas filas atrás. O homem explica e pede que alguém troque de lugar com ele, para que se possa sentar ao lado da mulher. Parece que ninguém está para isso.
Como se não bastasse, chega a hora da refeição e, antes de todos, são servidos os judeus ortodoxos, com uma refeição-especial-de-corrida-judeu-ortodoxo, só depois os outros, aqueles para quem o Deus deles se está marimbando para o que comem. O da janela, o que não se pode sentar ao pé de mulheres porque a religião não lho permite, recebe o seu tabuleiro e não diz que não. A miopia não me permite ver-lhe o conteúdo, mas observo-o a ler um papel que vem no tabuleiro, imagino com a composição do repasto, a virar e a revirar cada um dos itens, e a revirar e a voltar a revirar, a tirá-los da embalagem e a voltar a virar e revirar. E finalmente, talvez não considerando nenhum dos alimentos suficientemente puro, bebe a água e manda o resto para o lixo. Pena que o Deus dele não lhe explique que uma boa parte da população mundial ficaria imensamente feliz com aquela refeição. Sinceramente, a nossa civilização-politicamente-correcta é demasiado tolerante com gente assim, como se os temesse.

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