22.2.06

Da dificuldade das classificações

Da janela da sala de jantar onde se encontrava, com o cabelo ao vento, Rahel via a chuva a bater no telhado de chapa ferrugenta daquilo que fora a fábrica de pickles da avó.
Pickles e Conservas Paraíso.
Entre a casa e o rio.
Fabricavam pickles, sumos, compotas, pó de caril e ananás enlatado. E compota de banana (ilegalmente) depois da O.P.A. (Organização dos Produtos Alimentares) a banir porque, segundo os seus critérios, aquilo não era compota nem geleia. Demasiado líquida para geleia e demasiado espessa para compota.Uma consistência ambígua, inclassificável, diziam eles.
Segundo rezavam os seus livros.
Olhando agora para trás, parecia a Rahel que essa dificuldade da família com classificações tinha raízes muito mais fundas do que a questão da compota-geleia.
Talvez Ammu, Estha e ela própria fossem os piores transgressores. Mas não eram os únicos. Havia também os outros. Todos eles quebraram as regras. Todos atravessaram território proibido. Todos perverteram as leis que estipulavam quem devia ser amado e quem não devia. E quanto. As leis que faziam avós das avós, tios dos tios, mães das mães, primas das primas, compota da compota e geleia da geleia.
Foi uma época em que os tios se tornaram pais, as mães amante, e as primas morriam e tinham funerais.
Foi uma época em que o impensável se tornou pensável e o impossível realmente aconteceu.


“O Deus das Pequenas Coisas” Arundhati Roy, Ed. Círculo Leitores pags 38 e 39

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